domingo, 17 de fevereiro de 2013

Iconografia do Profeta Elias - Parte II



O quadro que apresentamos é um dos maiores artistas barrocos e, provavelmente, dos maiores da história da pintura, o flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640), cujas obras se caracterizam pelo requinte sensorial do colorido, pela teatralidade das composições, pela exuberância e dinamismo dos corpos, geralmente dispostos em linha oblíqua e quase sempre contorcidas. Alguém afirmou que Rubens constitui o apogeu de toda a pintura anterior, de Miguel Ângelo a Caravagio de Tintoretto a El Greco e Varonese.
Datado de 1625, o quadro representa a profeta Elias recebendo de um anjo o alimento que lhe permitira recobrar as forças para a grande caminhada até ao monte horeb.
 Embora o tema seja o mesmo, difere muito dos quadros já aqui apresentados. Neste, o profeta não aparece a dormir, nem sequer sonolento ou cansado. É representado de pé, pronto para partir, vigoroso, seco de carnes, pernas e braços musculosos. Como é típico das personagens de Rubens, e do Barroco, em geral, não está estático. Faz o gesto, um pouco tímido, talvez respeitoso, de receber a oferta. O manto, de cor branca, contrariamente à cor vermelha habitual, parece agitar-se com a vinda do anjo.
Este, por seu lado, acaba de chegar. Os artistas barrocos gostam de captar o momento exato da metamorfose. O mensageiro de Deus ainda não parou. Dá o último passo. Ainda nem recolheu as asas. Também as vestes, esvoaçam como que agitadas pelo vento causado pelo voo. O rosto, extremamente juvenil, delicado, quase feminino, contrasta fortemente com a virilidade do profeta. A expressão facial parece mostrar respeito e espanto, reconhecendo a grandeza daquele atleta de Deus. A arte barroca aprecia os contrastes violentos, exprimindo a ideia de que toda a realidade é uma combinação de opostos.
Repare-se no enquadramento. Sugere que estamos a assistir a uma peça de teatro, num palco delimitado por robustas colunas torsas, salomónicas, também elas cheias de dinamismo, como é próprio da arquitetura barroca. A paisagem, ao fundo, agita-se. As nuvens levantam-se, como as cortinas de um palco, para deixarem ver a cena.
Todos estes elementos compositivos transmitem a impressão de que Elias é um profeta cheio de energia, um homem de acção decidida, não propriamente um contemplativo.
Mas o pormenor que mais me surpreende é o copo que o anjo apresenta. Pela delicadeza do seu trabalho, parece pertencer a um serviço palaciano de mesa. Lembra um copo de Murano, delicadamente trabalhado. Uma peça tão requintada, no meio de um deserto, prestes a ser entregue a um duro asceta, é mais um daqueles contrastes que os barrocos tanto apreciam. Rubens, porém, sabe que a bebida é interpretada como prefiguração do sangue eucarístico de Cristo. Por isso pinta o cálice tão preciosamente.
Aliás, o pão e a taça encontram-se mesmo no centro do quadro. São os elementos mais importantes da composição. Simbolizam a Eucaristia.

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Depois dos quadros que representam o sonho do profeta Elias e o encontro com a viúva de Serepta, não resisto a apresentar a iconografia do seu arrebatamento ao céu num carro de fogo. O espetacular episódio encontra-se no Segundo Livro dos Reis, cap. 2.
Embora haja muitas representações desta cena, escolhi uma iluminura de um códice medieval, pertencente a uma biblioteca holandesa, e um ícone. Apesar da ingenuidade técnica da iluminura, ela é, em minha opinião, encantadoramente expressiva. Repare-se na ausência de perspetiva, na inabilidade com que se desenham os cavalos, na solução extremamente estilizada que o pintor encontrou para representar o fogo. Apesar disso, o artista consegue dizer o que tem a dizer. O seu trabalho produz o efeito desejado. Ao artista medieval não interessa propriamente a técnica, mas a mensagem que pretende comunicar.
O episódio situa-se numa paisagem cujos elementos são apresentados em todas as iconografias desta cena. O mais importante é o rio Jordão. O profeta sobe ao céu quando se encontrava nas suas margens. Sugerem-no duas pequenas manchas azuladas, nos cantos esquerdo e direito da parte inferior da miniatura. Se bem repararmos, no ícone veem-se mesmo alguns peixes com a cabeça de fora. Isso basta para sabermos que é um rio.
A figura em terra é o profeta Eliseu, a quem o profeta Elias, que se encontra dentro da carroça, transmite a sua missão e os seus poderes taumatúrgicos. Que se trata de um carro de fogo é indicado simplesmente pelas chamas que crepitam no seu interior. O texto bíblico diz que também os cavalos eram de fogo mas o pintor prescindiu desse pormenor, supondo que todos nós conhecemos o relato do arrebatamento. No ícone, porém, eles encontram-se dentro da grande mancha vermelha que representa o fogo em turbilhão, trazido por um anjo, o mensageiro e executor das ordens divinas. Os cavalos têm asas. Isso significa que voam para o céu, é representado pelas estrelas, pela mão de Deus, que opera todas as maravilhas e por uns traços ondulantes que representam a luz do sol. Segundo a cosmologia medieval, Deus encontra-se no empíreo, acima de todas as esferas. Abaixo dele, por ordem decrescente, estão os círculos do Cristalino, do Firmamento, onde se encontram as estrelas que mantêm entre si uma posição firme (daí, firmamento), os círculos de Saturno, de Júpiter, de Marte, do Sol, de Vénus, de Mercúrio, da Lua e, no centro do sistema, a Terra. Por seu lado, na miniatura, a presença de Deus é apenas sugerida por uma pequena mancha vermelha, no canto superior direito, para onde o profeta dirige o olhar. Em todas as iconografias deste tema, o profeta é representado olhando para cima, isto é, para o céu. Para a imaginação humana, Deus e o céu estão lá no alto, por oposição ao demónio e aos infernos, que se encontram nos espaços inferiores, debaixo da Terra. O primeiro é o espaço da vida; o segundo, da morte.
Elemento importante da narrativa é o manto do profeta. Simboliza a sua dignidade e poder. Foi batendo com ele nas águas que o rio se abriu, permitindo a sua passagem, episódio que recorda os israelitas atravessando o Mar Vermelho, a pé enxuto. Na iluminura, o manto ainda escorrega do carro. Na outra iconografia, o profeta Eliseu puxa-o dos ombros de Elias, como se quisesse evitar a sua partida. Ficar com o manto dele significa herdar a sua missão e os seus poderes. Na iluminura, o profeta Elias apresenta nimbo, significando que é santo. O profeta Eliseu ainda não o ostenta porque ainda não começou a sua missão divina. No ícone, porém, ambos os profetas e o anjo têm nimbo dourado significando a santidade das três figuras.
Pormenor interessante é que, na iluminura, ambos apresentem a cabeça tonsurada, à maneira dos monges medievais. O iluminista pintou-os assim porque o profeta Elias é considerado o fundador da ordem dos monges carmelitas.

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Para rematar este ciclo do profeta Elias, escolhi duas iconografias. A primeira é uma pintura de Giuseppe Angeli (Veneza, 1712-1798). Pintor do Barroco tardio, apresenta, neste quadro, as tonalidades suavemente luminosas da escola veneziana. Escolhi-o porque estabelece um forte contraste com a ingenuidade técnica da iluminura medieval e do ícone bizantino.
            Nota-se, imediatamente, o domínio da perspetiva. O pintor situa-se num plano inferior à cena. Além de nos dar a viva impressão de que o carro do profeta já voa no ar, permite a exibição do domínio técnico necessário para pintar figuras vistas de baixo. Recorde-se, a propósito, a mestria de Miguel Ângelo, na Capela Sistina, ou o virtuosismo de Andréa Pozzo, pintor jesuíta, especialmente na glorificação de Santo Inácio de Loiola que se encontra na igreja de Santo Inácio em Roma. Esta técnica permite abrir na pintura a dimensão do espaço superior. Além disso, e principalmente, a figura retratada a partir de um plano inferior adquire maior grandeza. O profeta era um gigante de Deus.
Elias apresenta as características habituais: ancião, barbas brancas e calva, olhando para o céu, envolto no largo manto que depois deixará ao profeta Eliseu que, em terra, levanta os braços em sinal de espanto ou suplicando que o seu mestre não o abandone. O carro está representado apenas por uma roda (atributo muito frequente nas escultura de Elias, juntamente com a espada flamígera). O fogo irrompe do carro, junto aos pés do profeta. A posição rompante dos cavalos, patas dianteiras erguidas, transmite a ideia de movimento vigoroso. As nuvens indicam que a cena acontece já no ar. Toda a composição é espetacular. A arte barroca é, essencialmente, espetáculo, movimento vigoroso. Nenhum elemento se encontra em posição estática. As próprias nuvens se abrem.
            Apresento, igualmente, uma das mais antigas representações da assunção do profeta Elias, esculpida na face lateral direita do túmulo em mármore dos Anicii, importante família romana. Os arqueólogos datam-no de finais do séc. IV (390-400). É um exemplo de como a arte paleocristã aproveita as formas e os símbolos da arte romana. É possível observar, no nicho da direita, definido por um arco de volta perfeita, a mão de Deus entregando as tábuas da lei a Moisés. O profeta Eliseu já segura o manto de Elias, que se encontra de pé, dentro do carro puxado por uma quadriga alada. Repare-se na semelhança da roda com a da pintura de Giuseppe Angeli. As vestes são carateristicamente romanas. Um dos elementos mais interessantes é a figura deitada no chão, com uma cana na mão esquerda, sob a qual se pode ver um cântaro donde flui água. É uma alegoria do rio Jordão, em cujas margens teve lugar a assunção de Elias. Era assim que a arte grega e romana e a arte de filiação clássica representava, alegoricamente, os rios e as fontes.




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