O quadro que apresentamos é um dos maiores artistas barrocos e, provavelmente, dos maiores da história da pintura, o flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640), cujas obras se caracterizam pelo requinte sensorial do colorido, pela teatralidade das composições, pela exuberância e dinamismo dos corpos, geralmente dispostos em linha oblíqua e quase sempre contorcidas. Alguém afirmou que Rubens constitui o apogeu de toda a pintura anterior, de Miguel Ângelo a Caravagio de Tintoretto a El Greco e Varonese.
Datado de 1625, o quadro representa a profeta Elias recebendo de um anjo o alimento que lhe permitira recobrar as forças para a grande caminhada até ao monte horeb.
Embora o tema seja o mesmo, difere muito dos
quadros já aqui apresentados. Neste, o profeta não aparece a dormir, nem sequer
sonolento ou cansado. É representado de pé, pronto para partir, vigoroso, seco
de carnes, pernas e braços musculosos. Como é típico das personagens de Rubens,
e do Barroco, em geral, não está estático. Faz o gesto, um pouco tímido, talvez
respeitoso, de receber a oferta. O manto, de cor branca, contrariamente à cor
vermelha habitual, parece agitar-se com a vinda do anjo.
Este, por seu lado, acaba de chegar. Os
artistas barrocos gostam de captar o momento exato da metamorfose. O mensageiro
de Deus ainda não parou. Dá o último passo. Ainda nem recolheu as asas. Também
as vestes, esvoaçam como que agitadas pelo vento causado pelo voo. O rosto, extremamente
juvenil, delicado, quase feminino, contrasta fortemente com a virilidade do
profeta. A expressão facial parece mostrar respeito e espanto, reconhecendo a
grandeza daquele atleta de Deus. A arte barroca aprecia os contrastes
violentos, exprimindo a ideia de que toda a realidade é uma combinação de
opostos.
Repare-se
no enquadramento. Sugere que estamos a assistir a uma peça de teatro, num palco
delimitado por robustas colunas torsas, salomónicas, também elas cheias de
dinamismo, como é próprio da arquitetura barroca. A paisagem, ao fundo,
agita-se. As nuvens levantam-se, como as cortinas de um palco, para deixarem
ver a cena.
Todos
estes elementos compositivos transmitem a impressão de que Elias é um profeta
cheio de energia, um homem de acção decidida, não propriamente um
contemplativo.
Mas o
pormenor que mais me surpreende é o copo que o anjo apresenta. Pela delicadeza
do seu trabalho, parece pertencer a um serviço palaciano de mesa. Lembra um
copo de Murano, delicadamente trabalhado. Uma peça tão requintada, no meio de
um deserto, prestes a ser entregue a um duro asceta, é mais um daqueles
contrastes que os barrocos tanto apreciam. Rubens, porém, sabe que a bebida é
interpretada como prefiguração do sangue eucarístico de Cristo. Por isso pinta
o cálice tão preciosamente.
Aliás,
o pão e a taça encontram-se mesmo no centro do quadro. São os elementos mais
importantes da composição. Simbolizam a Eucaristia.
***
Depois
dos quadros que representam o sonho do profeta Elias e o encontro com a viúva
de Serepta, não resisto a apresentar a iconografia do seu arrebatamento ao céu num
carro de fogo. O espetacular episódio encontra-se no Segundo Livro dos Reis,
cap. 2.
Embora haja muitas representações desta
cena, escolhi uma iluminura de um códice medieval, pertencente a uma biblioteca
holandesa, e um ícone. Apesar da ingenuidade técnica da iluminura, ela é, em
minha opinião, encantadoramente expressiva. Repare-se na ausência de
perspetiva, na inabilidade com que se desenham os cavalos, na solução
extremamente estilizada que o pintor encontrou para representar o fogo. Apesar
disso, o artista consegue dizer o que tem a dizer. O seu trabalho produz o
efeito desejado. Ao artista medieval não interessa propriamente a técnica, mas
a mensagem que pretende comunicar.
O
episódio situa-se numa paisagem cujos elementos são apresentados em todas as
iconografias desta cena. O mais importante é o rio Jordão. O profeta sobe ao
céu quando se encontrava nas suas margens. Sugerem-no duas pequenas manchas
azuladas, nos cantos esquerdo e direito da parte inferior da miniatura. Se bem
repararmos, no ícone veem-se mesmo alguns peixes com a cabeça de fora. Isso
basta para sabermos que é um rio.
A figura em terra é o profeta Eliseu, a quem
o profeta Elias, que se encontra dentro da carroça, transmite a sua missão e os
seus poderes taumatúrgicos. Que se trata de um carro de fogo é indicado
simplesmente pelas chamas que crepitam no seu interior. O texto bíblico diz que
também os cavalos eram de fogo mas o pintor prescindiu desse pormenor, supondo
que todos nós conhecemos o relato do arrebatamento. No ícone, porém, eles
encontram-se dentro da grande mancha vermelha que representa o fogo em
turbilhão, trazido por um anjo, o mensageiro e executor das ordens divinas. Os
cavalos têm asas. Isso significa que voam para o céu, é representado pelas
estrelas, pela mão de Deus, que opera todas as maravilhas e por uns traços
ondulantes que representam a luz do sol. Segundo a cosmologia medieval, Deus
encontra-se no empíreo, acima de todas as esferas. Abaixo dele, por ordem
decrescente, estão os círculos do Cristalino, do Firmamento, onde se encontram
as estrelas que mantêm entre si uma posição firme (daí, firmamento), os
círculos de Saturno, de Júpiter, de Marte, do Sol, de Vénus, de Mercúrio, da
Lua e, no centro do sistema, a Terra. Por seu lado, na miniatura, a presença de
Deus é apenas sugerida por uma pequena mancha vermelha, no canto superior
direito, para onde o profeta dirige o olhar. Em todas as iconografias deste
tema, o profeta é representado olhando para cima, isto é, para o céu. Para a
imaginação humana, Deus e o céu estão lá no alto, por oposição ao demónio e aos
infernos, que se encontram nos espaços inferiores, debaixo da Terra. O primeiro
é o espaço da vida; o segundo, da morte.
Elemento
importante da narrativa é o manto do profeta. Simboliza a sua dignidade e poder.
Foi batendo com ele nas águas que o rio se abriu, permitindo a sua passagem,
episódio que recorda os israelitas atravessando o Mar Vermelho, a pé enxuto. Na
iluminura, o manto ainda escorrega do carro. Na outra iconografia, o profeta
Eliseu puxa-o dos ombros de Elias, como se quisesse evitar a sua partida. Ficar
com o manto dele significa herdar a sua missão e os seus poderes. Na iluminura,
o profeta Elias apresenta nimbo, significando que é santo. O profeta Eliseu
ainda não o ostenta porque ainda não começou a sua missão divina. No ícone,
porém, ambos os profetas e o anjo têm nimbo dourado significando a santidade
das três figuras.
Pormenor interessante é que, na iluminura,
ambos apresentem a cabeça tonsurada, à maneira dos monges medievais. O iluminista
pintou-os assim porque o profeta Elias é considerado o fundador da ordem dos
monges carmelitas.
***
Para rematar este ciclo do profeta Elias,
escolhi duas iconografias. A primeira é uma pintura de Giuseppe Angeli (Veneza,
1712-1798). Pintor do Barroco tardio, apresenta, neste quadro, as tonalidades
suavemente luminosas da escola veneziana. Escolhi-o porque estabelece um
forte contraste com a ingenuidade técnica da iluminura medieval e do ícone
bizantino.
Nota-se,
imediatamente, o domínio da perspetiva. O pintor situa-se num plano inferior à
cena. Além de nos dar a viva impressão de que o carro do profeta já voa no ar,
permite a exibição do domínio técnico necessário para pintar figuras vistas de
baixo. Recorde-se, a propósito, a mestria de Miguel Ângelo, na Capela Sistina,
ou o virtuosismo de Andréa Pozzo, pintor jesuíta, especialmente na glorificação
de Santo Inácio de Loiola que se encontra na igreja de Santo Inácio em Roma.
Esta técnica permite abrir na pintura a dimensão do espaço superior. Além
disso, e principalmente, a figura retratada a partir de um plano inferior
adquire maior grandeza. O profeta era um gigante de Deus.
Elias
apresenta as características habituais: ancião, barbas brancas e calva, olhando
para o céu, envolto no largo manto que depois deixará ao profeta Eliseu que, em
terra, levanta os braços em sinal de espanto ou suplicando que o seu mestre não
o abandone. O carro está representado apenas por uma roda (atributo muito
frequente nas escultura de Elias, juntamente com a espada flamígera). O fogo
irrompe do carro, junto aos pés do profeta. A posição rompante dos cavalos,
patas dianteiras erguidas, transmite a ideia de movimento vigoroso. As nuvens
indicam que a cena acontece já no ar. Toda a composição é espetacular. A arte
barroca é, essencialmente, espetáculo, movimento vigoroso. Nenhum elemento se
encontra em posição estática. As próprias nuvens se abrem.
Apresento,
igualmente, uma das mais antigas representações da assunção do profeta Elias,
esculpida na face lateral direita do túmulo em mármore dos Anicii, importante
família romana. Os arqueólogos datam-no de finais do séc. IV (390-400). É um
exemplo de como a arte paleocristã aproveita as formas e os símbolos da arte
romana. É possível observar, no nicho da direita, definido por um arco
de volta perfeita, a mão de Deus entregando as tábuas da lei a Moisés. O
profeta Eliseu já segura o manto de Elias, que se encontra de pé, dentro do
carro puxado por uma quadriga alada. Repare-se na semelhança da roda com a da
pintura de Giuseppe Angeli. As vestes são carateristicamente romanas. Um dos
elementos mais interessantes é a figura deitada no chão, com uma cana na mão
esquerda, sob a qual se pode ver um cântaro donde flui água. É uma alegoria do
rio Jordão, em cujas margens teve lugar a assunção de Elias. Era assim que a
arte grega e romana e a arte de filiação clássica representava, alegoricamente,
os rios e as fontes.
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