quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O herói de guerra português que é santo carmelita

D. Nuno Álvares Pereira

Autora: Renata Cristina de Sousa Nascimento

Os elementos de singularidade de Nuno Álvares Pereira são traçados inicialmente sob suas façanhas militares e sólida lealdade ao rei D. João I. Nascido no ano de 1360, provavelmente em Cernache do Bonjardim, a historiografia recente aí situa que seu pai, Álvaro Gonçalves Pereira (Prior do Crato) teria seu paço. De autor desconhecido a Crónica do Condestabre (ou Estória de Dom Nuno Álvares Pereira), escrita no início do século XV inaugurou a mitificação deste personagem. “O texto original não chegou até nós. O que conhecemos é o que resultou da edição empreendida em 1526 por Germão Galharde” (MONTEIRO, 2017, p. 41), provavelmente esta edição teria sido patrocinada pela Casa de Bragança. D. Afonso I (1377-1461), filho ilegítimo de D. João I foi o 1o Duque de Bragança, tendo se casado com Beatriz Pereira de Alvim, única filha de Nuno Álvares Pereira. As Crónicas de Fernão Lopes, especialmente a Crónica de D. Fernando e a Crónica del Rei Dom João I da boa memória são fontes narrativas valiosas para o conhecimento deste personagem. Conforme a Crónica de D. Fernando Nuno Álvares iria viver na corte aos 13 anos. Levado por seu pai, aí foi armado cavaleiro sendo inicialmente pajem da rainha Leonor Teles. Aos 16 anos casou-se com uma jovem viúva, Dona Leonor Alvim.

Os traços do cavaleiro audaz e virtuoso atribuídos ao personagem tem clara influência dos contos arturianos, sendo Nuno Álvares uma espécie de Galaaz nas narrativas sobre sua atuação guerreira. As fontes se preocupam em realçar três elementos constitutivos deste personagem, e que delimitariam sua posterior iconografia: O guerreiro, senhor de terras e o devoto. Quanto à carreira militar sua primeira participação efetiva foi em 1381, na terceira guerra entre Castela e Portugal, ocorrida durante o reinado de D. Fernando I. Após a morte do monarca em 1383, o contexto sucessório instável obrigaria Nuno Álvares a uma tomada de decisão que marcaria seu destino. Desde o início da crise sucessória Nuno foi aliado incontestável do Mestre de Avis, sendo seu companheiro de armas e fronteiro da comarca alentejana. Em 1384 destacou-se na Batalha de Atoleiros. Nas cortes de Coimbra ocorridas em 1385 foi feito Condestável do reino.

Enlegido o Meestre e alçado assi por Rei, falou-se logo que fizessem condestabre para a guerra em que eram postos, segundo novamente fezera el-Rei D. Fernando, quando em seu tempo os Ingreses veerom. E ordenou el-Rei que o fosse o seu mui leal e fiel servidor Nuno Álvarez Pereira, avendo aaquel tempo vinte e quatro anos e nove meses e doze dias, conhecendo dêl que era d’honestos costumes e mui avisado nos autos da cavalaria (FERNÃO LOPES, 1939, 1a parte, cap. 193, p. 63)

Na Batalha de Aljubarrota (1385), épico da história militar portuguesa, sua ação é vista por Fernão Lopes como providencialista. Fátima Regina Fernandes (2009) destaca as preferências e táticas bélicas do Condestável, promovendo uma estratégia eficiente, diferenciando do conceito oligárquico de guerra. Esta noção começava a ser substituída, priorizando a infantaria e escaramuças nos confrontos. O Condestável não era muito favorável às operações de cerco, estratégia militar considerava por ele muito morosa. Preferindo sempre as batalhas campais, foi protagonista nas três que participou: Atoleiros (1384), Aljubarrota (1385) e Valverde (1385). Nesta última, ocorrida poucos meses após Aljubarrota, correu grande risco tendo sido ferido no pé. Com a vitória e aclamação de D. João I que governou de 1385 a 1433, o Condestável de Portugal firmou-se como um grande senhor, possuindo patrimônio invejável, além de prerrogativas de natureza jurídica e direitos sobre as populações. Recebendo diversas benesses reais, que também se estenderiam a seus apaniguados, não tardaram conflitos e difamações. Esta situação teria conduzido a coroa a proibir o controle total de Nuno Álvares sobre seus vassalos. O fim do conflito entre o Condestável e seu rei passaria pelo acerto do já citado casamento de sua filha Beatriz Pereira de Alvim, com D. Afonso I, bastardo do monarca. 

Possuidor dos condados de Barcelos, Ourém e Arraiolos, doou a seu genro o condado de Barcelos, como dote por seu casamento com sua filha. Deste matrimônio nasceriam seus netos Afonso e Fernando, que foram agraciados por seu avô com grande patrimônio. Deles nasceria a poderosa e real Casa de Bragança. Com domínios no norte, centro e sul, preferiu provavelmente Almada edificando neste local um paço. Em julho de 1404 nos seus paços de Alamada fez sua primeira grande doação de bens ao Convento do Carmo, fundado por ele em Lisboa (MONTEIRO, 2017). Temos aí uma destacada faceta do Condestável, que garantiria sua canonização quase seiscentos anos após sua morte, a de religioso. A par de seu perfil guerreiro, e fundador de uma importante casa nobiliárquica temos a exaltação de sua santidade. A construção narrativa sobre “o Santo Condestável” foi iniciada ainda durante sua vida. Nas crônicas foi sempre retratado como um homem que aliava sua prática de guerra aos afazeres religiosos; respeitava os dias santos, ouvia missa todos os dias; evitava que seus homens invadissem igrejas; protegia os pobres e desamparados.

Adepto de uma espiritualidade mais litúrgica retirou-se ao Convento das Carmelitas em Lisboa aos 62 anos, em 1422 (depois da conquista de Ceuta), lugar em que viveu os últimos nove anos de sua vida. Conforme Aires do Nascimento (2010), o rei D. Duarte (1391-1438), solicitou a Roma sua canonização. Seu irmão, D. Pedro também teria manifestado diversas vezes sua devoção ao santo conde. Observa-se o início da construção de santidade do Condestável ligada à Casa de Avis. De sua iconografia temos várias representações, muitas destas ligadas ao herói das batalhas, ou ao carmelita. A Chronica dos Carmelitas da antiga, e regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves, e seus Domínio, do Frei José Pereira de Sant’Anna, escrita em 1745 ocupa-se na Parte III do Tomo I à fundação do Convento do Carmo em Lisboa. Mesmo tendo um alto grau de comprometimento com a Ordem do Carmo, é uma fonte que deve ser considerada com atenção. Ela revela parte do cotidiano da construção do Convento e da própria rotina de seu fundador. Grande parte da documentação consultada pelo Frei Pereira de Sant’Anna foi destruída no grave incêndio ocorrido em Lisboa, em 1755.

Como donato (semifrater) Nuno Álvares ocupava uma pequena cela, vivendo de forma simples, praticando a caridade. Gouveia Monteiro (2017) assinala a influência que este teria recebido dos eremitas alentejanos, não esquecendo também que era um nobre da família Pereira, filho e irmão de priores da Ordem do Hospital. Os carmelitas associavam-se ao exemplo do profeta Elias, de tradição eremítica e de despojamento de riquezas. Ao entrar no Convento do Carmo o Condestável teria se despojado de todo seu patrimônio. Sua filha Beatriz já havia falecido, e este já encontrava- se distante das decisões da corte régia, embora mantivesse uma relação de amizade com os infantes, especialmente D. Duarte, que se tornaria rei em 1433. Ambicionando a vida contemplativa e de pobreza, ao tornar-se donato passou a chamar-se Nuno de Santa Maria. As fontes indicam que em sua vida conventual praticava constantemente o jejum, e penitências corporais. A religiosidade popular o agraciava com a epíteto de santo. Aos 71 anos e 11 meses faleceu em Lisboa, no ano de 1431, sendo seus restos mortais inicialmente expostos na Igreja do Mosteiro em que vivia. Sua trajetória de vida e de devoção deram origem à sua fama de santidade.

Na correlação político-religiosa, elevam-se as aproximações entre sagrado e profano, em mútua dependência. A reputação de santidade atribuída a D. Nuno Álvares Pereira, é uma construção que envolve várias épocas. A eficácia da elaboração e consolidação de uma imagem de santidade perpassa por elementos substanciais: A narrativa hagiográfica, o reconhecimento de milagres, e uma vida pautada por diversas virtudes. Ao começar pela Crónica do Condestável de Portugal, temos a exaltação destas virtudes. Ao empenhar-sena proclamação de santidade de Nuno de Santa Maria, o rei D. Duarte enviou a Roma uma oração elaborada por seu irmão D. Pedro. Aires do Nascimento (2017, p. 340) nos oferece a tradução da mesma, revelando o perfil de sacralidade que desejava-se perpetuar; “Modelo de príncipes, exemplo de senhores, espelho de contemplativos és tu, bem-aventurado Nuno! Tu foste firme e forte em combate, tu foste comedido e apiedado na vitória, tu foste justo e misericordioso na paz, tu foste obediente e devoto no claustro”.

Após o Terremoto de Lisboa em 1755, seus despojos corporais foram diversas vezes levados de um lugar para outro. Estavam inicialmente em um relicário de prata, que foi roubado. Seu túmulo primitivo foi finalmente reconhecido em 1961 (NASCIMENTO, 2018). Quanto ao que restou de seus ossos estes foram depositados na Igreja do Santo Condestável no Campo de Ourique (Lisboa), em agosto de 1951. Na ocasião organizou-se um cortejo solene, com a presença de várias autoridades políticas e religiosas. As relíquias foram depositadas na cripta da Igreja, onde lá permanecem. A revalorização de sua memória tornou-se mais sólida, após a canonização de São Nuno de Santa Maria, pelo papa Bento XVI em 2009.

Referência: Dicionário: cem fragmentos biográficos. A idade média em trajetórias /Guilherme Queiroz de Souza & Renata Cristina de Sousa Nascimento (org.): Tempestiva, 2020.

Você pode ler no original em: https://bit.ly/100Fragmentos